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Peter Naumann

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Elogio do cosmopolitismo

Artigo de Peter Naumann dedicado a Pepe Escobar, "em agradecimento pelo seu esforço para informar e desasnar seus leitores e ouvintes mundo afora"

Pepe Escobar (Foto: Flickr / Brasil 247)
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Muito provincianismo e paroquialismo, pouco ou quase nenhum cosmopolitismo; muito acanhamento e mesquinhez, pouca generosidade intelectual e afetiva: eis a primeira impressão de quem frequenta a mídia impressa, radiofônica e televisiva do mundo que se diz livre, no Brasil e alhures; as diferenças são apenas graduais, não estruturais. Tal impressão também é duradoura. Assenta na diferença entre a opinião pública - sonho distante de um Brasil ainda não republicano, e a mera opinião publicada, nela inclusos os fatos omitidos, sonegados e subtraídos ao conhecimento da sociedade. Entre nós, a opinião pública ainda é uma utopia. A opinião publicada, uma distopia, que as forças progressistas buscam superar. Podemos resumir isso em uma frase simples, que sem dúvida teria agradado aos que na Europa setecentista batalharam pela opinião pública: a opinião pública esclarece e ilumina; a opinião apenas publicada, entreva.

Mas há exceções. Uma das mais interessantes em escala global é Pepe Escobar, ao qual esse breve texto é dedicado em reconhecimento do e agradecimento pelo seu esforço para informar e desasnar seus leitores e ouvintes mundo afora. Seus artigos, escritos em inglês e ocasionalmente traduzidos ao português, bem como suas frequentes entrevistas concedidas ao blog 247 mostram o que um jornalismo não-alienado pode e deve ser.

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Pepe Escobar se define como “nômade”. Poderíamos dizer também cosmopolita. Tive um colega e amigo, Mariano García Landa (1930-2014), espanhol de nascença, também andarilho, que ainda será reconhecido como o filósofo, que a interpretação de conferências produziu. Gostava de dizer: “Considero peligroso para la salud mental vivir en un solo país porque la perspectiva es muy reducida.”

Para caracterizar o cosmopolitismo, escolhi um trecho de um grande romance da literatura alemã, da “História dos abderitas” de Christoph Martin Wieland (1733-1813). A obra foi publicada em folhetim de 1773 a 1780, a primeira edição em livro data de 1781. Wieland é um autor quase desconhecido nos dias atuais. Sem maior exagero, podemos afirmar que é lido sobretudo por quem escreve teses de doutorado sobre a sua obra - e esses leitores nem sempre são os mais agudos. Não está presente no cânone vivo da literatura alemã, do qual foi eliminado já no início do séc. XIX. Não obstante, é um dos maiores escritores de língua alemã de todos os tempos. Não sabe o que perde quem não o lê. Sua obra é enorme e abrange muitos gêneros, da poesia ao romance, passando pelo ensaio. Wieland traduziu as obras de Shakespeare em prosa, quase todas as cartas de Cícero, as Sátiras e as Epístolas de Horácio e todas as obras de Luciano de Samósata, escritor grego do séc. II D.C. Editou de 1773 a 1789 a revista Teutscher Merkur (Mercúrio Alemão), a mais importante revista literária alemã da época. Paralelamente a Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), desprovincianizou por assim dizer a língua alemã. Não é de todo ocioso especular sobre o interesse, que Machado de Assis teria manifestado por Wieland. Ambos foram admiradores confessos de Lawrence Sterne. Abderitas são os habitantes da cidade de Abdera, situada na costa da Trácia e hoje ainda existente sob o mesmo nome, pronunciado em grego moderno Avdira. Já na Antiguidade eram considerados pessoas de poucas luzes. Diz a tradição que os filósofos Demócrito e Protágoras eram naturais de Abdera.

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O trecho do romance, traduzido a seguir, refere-se a um episódio narrado no Livro II. Os abderitas encomendam ao famoso médico Hipócrates um parecer sobre a presumida loucura de Demócrito. O “pai da Medicina” não se faz de rogado, visita Demócrito na sua chácara nos arredores da cidade... e ambos se descobrem amigos desde tempos imemoriais. Hipócrates comparece perante o Senado de Abdera, afirma no seu laudo que mais perigoso é o doente sem noção da sua enfermidade e prescreve ao parlamento de Abdera um remédio eficaz contra a doença que assola a população: a importação de heléboro em seis barcos de grande porte e sua distribuição em lotes de sete libras a cada cidadão, a expensas do Erário. O heléboro teria a qualidade de irritar as mucosas nasais e provocar espirros fortes, que curariam os abderitas da sua doença. Já aos senadores, Hipócrates prescreve duas porções de sete libras, uma vez que necessitam da inteligência não apenas para si mesmos, mas para bem cumprir seus deveres diante da coletividade. No mais, Hipócrates recomenda o próprio Demócrito como o melhor médico, que os abderitas poderiam ter.

Por ocasião do encontro de Hipócrates e Demócrito, o narrador apresenta e caracteriza a ordem dos cosmopolitas (História dos abderitas. 1ª Parte, Livro II, cap. 6 (Hipócrates visita Demócrito. Notícias secretas da ordem antiquíssima dos cosmopolitas). Traduzo desse capítulo um trecho, não sem antes chamar a atenção ao uso deliberado de algumas expressões mais clássicas do nosso idioma, na esperança de captar melhor a prosa de Wieland, de simplicidade sofisticada e imensa urbanidade. Busquei não ser pernóstico. Cabe ao leitor julgar se fui bem-sucedido nessa empreitada.

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Wieland sobre o cosmopolitismo - “Há uma espécie de mortais, já noticiada aqui e acolá pelos antigos sob o nome cosmopolitas, que - sem combinação prévia, sem insígnias, sem manter uma Loja e sem as mãos atadas por juras solenes - formam uma espécie de irmandade mais coesa do que qualquer outra ordem do mundo. Dois cosmopolitas chegam, um do Oriente, o outro do Ocidente, avistam-se pela primeira vez e são amigos - não em virtude de uma simpatia secreta, quiçá só encontrável em romances, não por causa de vínculos confirmados sob juramento -, mas por serem cosmopolitas. Em qualquer outra ordem também há irmãos falsos ou pelo menos indignos; na ordem dos cosmopolitas, tal é impossível; e esta é, conforme se nos afigura, uma vantagem nada menor dos cosmopolitas diante de todas as outras sociedades, associações, grêmios, ordens e irmandades do mundo. Pois onde há uma dentre todas, que poderia gabar-se de nunca ter tido em seu meio um presunçoso, um ambicioso, um avarento, um usurário, um caluniador, um fanfarrão, um hipócrita, um falso, um acusador disfarçado, um mal-agradecido, um alcoviteiro, um bajulador, um parasita, um escravo, um acéfalo ou sem coração, um pedante, um catador de moscas, um perseguidor, um falso profeta, um dissimulado, um saltimbanco, um enganador e um bobo da corte? Os cosmopolitas são os únicos a poderem se vangloriar disso. Sua sociedade não carece excluir os impuros por meio de cerimônias misteriosas e aterradores costumes dissuasórios, como outrora faziam os sacerdotes egípcios. Estes excluem-se a si mesmos; e quem não é cosmopolita não pode aparentar sê-lo, assim como ninguém sem talento pode proclamar-se bom cantor ou violinista. A fraude viria à luz do dia, tão logo tal pessoa se fizesse ouvir. É impossível imitar o modo de pensar dos cosmopolitas, seus princípios, suas convicções, sua linguagem, sua fleuma, sua temperatura e até seus caprichos, fraquezas e falhas, uma vez que eles são para todos os não-pertencentes a essa ordem um verdadeiro mistério. Não um mistério a depender da discrição dos membros ou dos seus cuidados em não serem auscultados, mas um mistério, que a própria natureza cobriu com seu véu. Pois os cosmopolitas podem sem hesitação mandar proclamá-lo ao mundo inteiro em meio ao clangor de trombetas e esperar na certeza de que ninguém além deles consiga compreender algo. Estando assim as coisas, nada mais natural do que o mais íntimo entendimento e a confiança recíproca, que se estabelece de inopino entre dois cosmopolitas na primeira hora, na qual travam conhecimento um do outro. Passados vinte anos de constância da sua amizade em meio a todas as espécies de provações e sacrifícios, Pílades e Orestes não são mais amigos do que os cosmopolitas desde o primeiro momento, no qual se reconhecem. Sua amizade não carece maturar ao longo do tempo, não carece de nenhuma provação: assenta na mais necessária de todas as leis da natureza, na nossa necessidade de amar a nós mesmos nos que mais se assemelham conosco.

Acaso se esperasse de nós maiores esclarecimentos acerca do segredo dos cosmopolitas, isso equivaleria a exigir-nos, se não o impossível, com certeza um contrasenso. Pois - como dissemos com suficiente clareza - faz parte da natureza da coisa que tudo o que dela podemos dizer é um enigma, para o qual só os membros dessa ordem possuem a chave. Podemos acrescentar ainda tão-somente que o seu número sempre foi muito reduzido em todos os tempos e que eles, a despeito da invisibilidade da sua sociedade, desde sempre exerceram no curso desse mundo uma influência, cujos efeitos são tão mais seguros e duradouros, à medida que não produzem ruído e quase sempre são obtidos por meios, cuja direção aparente confunde os olhos da turba. A quem isso é um enigma a mais, preferimos pedir que prossiga na leitura, em vez de quebrar a cabeça sem necessidade diante de um assunto, que tão pouco lhe diz respeito.”

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(Fonte: Christoph Martin Wieland. Sämmtliche Werke [Obras Completas], vol. XIX. Leipzig, Georg Joachim Göschen, 1796, pp. 217-220)

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